Milhões de espectadores assistiram em 1988 a uma das mais empolgantes corridas de 100 metros em Jogos Olímpicos.
Lado a lado lutaram ao milésimo de segundo o norte-americano Carl Lewis, vencedor de quatro medalhas de ouro em Los Angeles 1984, e o canadiano Ben Johnson, que nos Mundiais do ano anterior surpreendera Lewis e batera o recorde mundial.
O sprinter que pouco tempo antes era apenas um atleta mediano fez uma corrida extraordinária e estabeleceu uma nova melhor marca mundial da distância (9,79s).
A euforia gerada pelo novo super-homem depressa se transformou em escândalo, quando Johnson chumbou no controlo antidoping que se seguiu e perdeu a medalha para Lewis.
O canadiano consumira esteróides anabolizantes durante mais de sete anos e esperava ganhar daí alguma vantagem em Seul. Aparentemente, atingiu o seu objectivo no momento da corrida. E essa foi a versão do caso que prevaleceu durante os largos anos em que Lewis criticou Johnson e condenou publicamente o uso de dopantes.
O que as equipas médicas do Comité Olímpico Internacional (COI) não sabiam na altura era que a ficha de King Lewis estava tão suja como a do canadiano.
Aquele que ainda figura na galeria de heróis no sítio do COI e na história dos Jogos Olímpicos é um dos mais de cem atletas norte-americanos cujos controlos positivos foram camuflados pelo Comité Olímpico dos EUA (USOC) nos finais dos anos 80 e na década passada.
Wade Exum, médico do USOC entre 1991 e 2000, foi o responsável pelo primeiro abalo no desporto norte-americano, quando este ano cedeu à imprensa mais de 10 mil páginas de documentos confidenciais onde constavam processos relativos a 19 atletas medalhados durante esse período.
Depois disso têm-se sucedido as descobertas que põem a nu a fragilidade de muitos campeões norte-americanos e os negócios que aqui imperam bem como as preocupações com as redes cada vez mais internacionais de doping.
Num torneio de apuramento para Seul, Lewis acusara o consumo de pequenas quantidades de pseudoefedrina, efedrina e fenilpropanolamina. Quando a comunicação social denunciou o doping camuflado, o sprinter argumentou que teve o mesmo tratamento que os restantes atletas com testes positivos e que ainda havia um grande debate sobre se essas substâncias fazem alguma coisa.
Na realidade estes estimulantes constavam na lista de substâncias proibidas no desporto e há apenas cinco semanas a Agência Mundial Antidopagem (AMA) decidiu retirar a pseudoefedrina e a cafeína, que mesmo assim continuam a ser monitorizadas por vários laboratórios antidopagem, inclusive o de Portugal.
Estas substâncias aumentam a concentração e diminuem a percepção do cansaço ao actuarem directamente no Sistema Nervoso Central, mas podem provocar diversos efeitos secundários: batimentos cardíacos anormais, problemas na coordenação motora, comportamento agressivo, perda de peso, tremores, insónia, suores constantes, ataques cardíacos e aumento da pressão arterial.No dossier publicado pelo jornal Orange County Register constam os resultados de três testes efectuados a Lewis antes das Olimpíadas.
Todos apontam vestígios das mesmas substâncias e resultaram em avisos para o atleta: Segundo a política do USOC, estes resultados são causa para desqualificação da equipa olímpica (...). Se tiver provas para apelar, tem dez dias para o fazer. O sprinter assim o fez e, como dezenas de outros atletas, foi admoestado apenas com um aviso no lugar de uma suspensão.
Durante mais de dez anos, os responsáveis pela disciplina da Federação Norte-Americana de Atletismo (USATF) e do USOC aceitaram inúmeros apelos de utilização inadvertida de dopantes e aconselharam os atletas a consultarem as equipas médicas dos organismos para obterem informações sobre medicamentos que podem conter substâncias proibidas. Ou seja, aparentemente os dirigentes aceitaram a alegada ignorância de profissionais de topo mundial, 19 deles medalhados, entre os quais Joe DeLoach, vencedor dos 200m nas Olimpíadas da Coreia do Sul, e a tenista Mary Joe Fernandez, medalha de ouro e bronze em Barcelona 1992.
Na altura em que isso aconteceu, Carl Lewis já tinha quatro medalhas de ouro olímpicas. Sabia perfeitamente que tinha de ter muito cuidado com o que tomava. A pior acusação é a presença das substâncias no seu organismo, afirmou na altura o presidente da AMA.
A pressão exercida por Richard Pound levou o COI a exigir uma investigação do comité norte-americano. A polémica esfumou-se até Agosto, altura em que se realizou o Campeonato do Mundo de atletismo, em Paris.
Kelli White repetiu a proeza de Johnson ao vencer os 100 e 200m, mas enfrenta agora o perigo de perder as medalhas após ter chumbado num controlo antidoping (acusou modafinil).
O caso foi ainda mais adensado depois de a imprensa norte-americana ter descoberto que também Jerôme Young beneficiara do uso inadvertido de dopantes. A vitória de Young nos 400m em Paris foi abafada pelo facto de ter participado nos Jogos Olímpicos de Sydney 2000, onde fez parte da equipa que ganhou os 4x400m, depois de ter consumido nandrolona.E só sob forte pressão externa é que as autoridades desportivas norte-americanas reagiram.
Num relatório apresentado ao COI, o USOC admitiu apenas a existência de 24 atletas dopados em 15 anos, especificando que a federação de atletismo considerou uso inadvertido em alguns casos e aplicou suspensões noutros penas curtas e nunca comunicadas às instâncias internacionais, como ditam as regras.
Este prática ajudou o desporto norte-americano a ganhar uma hegemonia mundial após o colapso do Bloco Soviético e o combate incisivo à dopagem praticada pela China no início da década de 90, à semelhança do que fizera anteriormente a ex-Alemanha de Leste.
Mesmo depois de muitas promessas, a federação de atletismo continua a negar dar mais detalhes do caso Young às instâncias internacionais.
A "conspiração"Os podres do império do atletismo dos EUA descobertos em 2003 não se ficaram por aqui.
No início de Setembro, a Balco (Bay Area Laboratory Co-Operative), uma empresa de suplementos nutricionais, foi revistada por quatro agências que descobriram embalagens de esteróides anabolizantes e hormona de crescimento, assim como indícios de fraude fiscal. Mês e meio depois, a Agência Antidopagem norte-americana (USADA) anunciou ter descoberto uma conspiração envolvendo químicos, treinadores e certos atletas para desenvolverem um esteróide indetectável, com origem no laboratório californiano, o mesmo que realiza tratamentos vitamínicos de estrelas como Marion Jones, Tim Montgomery e Kelli White.
O fundador da Balco, Victor Conte Jr., negou as acusações da USADA, mas o seu advogado deixou um alerta em declarações ao jornal San Francisco Chronicle: Este caso pode ser mais grave que o de Kobe Bryant quando se fala da forma como o desporto é encarado nos EUA, afirmou Robert Holly, referindo-se ao julgamento em que o basquetebolista dos Los Angeles Lakers é acusado de ter violado uma mulher no Colorado. As revelações do defensor ganham importância quando se tem em conta a dimensão das investigações e as possíveis ligações que a Balco estabeleceu no altamente competitivo meio desportivo norte-americano. As buscas às instalações do laboratório foram conduzidas por 20 agentes das unidades de investigação criminal do Internal Revenue Service (IRS), responsável pela administração tributária, da Food and Drug Administration (FDA), agência de fiscalização dos alimentos e medicamentos, da USADA e da brigada de narcóticos da polícia de San Mateo County.Desde Junho que a Agência Antidoping investiga este caso, depois de um telefonema de um homem que se identificou como técnico de atletismo e acusou vários atletas de utilizarem um novo esteróide, impossível de detectar nos controlos, enviando mais tarde para a sede do organismo, no Colorado, uma seringa com vestígios do novo dopante.
Don Catlin e a equipa que dirige no laboratório antidopagem da Universidade da Califórnia conseguiram identificar a substância: tetrahidrogestrinona (THG), criada através de uma alteração molecular da gestrinona, um derivado sintético da 19-nortestosterona que é usado como tratamento hormonal em mulheres. É uma nova entidade química, nunca vista anteriormente. É como achar uma agulha num palheiro, afirmou Catlin ao The New York Times.
A descoberta de uma forma de detectar a utilização de THG levou a USADA a ordenar a reanálise de 550 amostras de urina, 350 recolhidas durante os campeonatos norte-americanos de atletismo e as restantes fora de competição e a atletas de várias modalidades. Até que as contra-análises estejam concluídas ou os possíveis recursos estejam decididos, as autoridades norte-americanas recusam revelar nomes. Pelo menos oficialmente, pois a Associated Press e os jornais mais politicamente mais influentes não tiveram dificuldades em furar a barreira do segredo.
O envolvimento de Kevin Toth, campeão norte-americano do lançamento do peso, e John McEwen, vice-campeão no martelo, foi pouco mediatizado quando comparado com os casos de Dwain Chambers e Regina Jacobs. Chambers é co-recordista europeu dos 100m e uma das estrelas que a Inglaterra esperava apresentar nos Jogos Olímpicos de Atenas 2004; um controlo surpresa, realizado em Agosto durante um treino na Alemanha, foi fatal para o britânico, cujo processo foi resolvido com uma suspensão de dois anos. Chambers provou que é um atleta de elite e ainda tem hipóteses de regressar, contrariamente a Jacobs.
A Grande Dama do atletismo norte-americano está na fase terminal da sua carreira, que, curiosamente, lhe trouxe a sua maior conquista: há oito meses em Birmingham, em plenos Mundiais de pista coberta, tornou-se a primeira mulher a correr os 1500 metros em menos de quatro minutos (3m59,98s).
Poucos atletas de elite se podem orgulhar de atingir o ponto alto das suas vidas profissionais aos 40 anos e ainda por cima depois de quatro presenças em Jogos Olímpicos, duas medalhas de prata em Campeonatos do Mundo (Atenas 97 e Sevilha 99) e 24 vitórias em provas norte-americanas. Quando o seu caso se tornar oficial, a Grande Dama terá de lidar com as inúmeras suspeitas à volta de um escândalo que permitiu ainda descobrir que, para além de Kelli White, também utilizaram modafinil o sprinters Chrystie Gaines e Calvin Harrison, ouro nos 4x400m nos Jogos Olímpicos de Sydney 2000 e nos Mundiais 2003. Todos os atletas envolvidos estão ligados à Balco e a maioria trabalhou com o treinador ucraniano Remi Korchemny.
Foi em 1996 que este técnico teve o primeiro contacto com a empresa de Victor Conte Jr.. Korchemny apresentou-se na Balco com Bill Romanowski, aguerrida e violenta estrela do futebol americano habituada a consumir todo o tipo de substância que lhe desenvolva a massa muscular. Segundo contou o San Francisco Chronicle, as autoridades do Colorado têm conhecimento das actividades da Balco desde há quatro anos, altura em Julie Romanowski confessou que o seu marido obteve hormona de crescimento no laboratório californiano e a injectou-a nos joelhos.
O atoleiro de mortes. Por insensibilidade para estes assuntos ou puro laxismo, nada se fez até à denúncia anónima recebida pela USADA, permitindo-se que Korchemny centrasse na Balco a preparação da sua equipa de atletismo e o tráfico de THG apanhasse Romanowski e outros quatro jogadores dos Oakland Raiders Dana Stubblefield, Chris Cooper e Barret Robbins , de acordo com o The NFL Todaye o Cbs.Sportsline.com.Surpreendente? Não. As ligas profissionais norte-americanas são totalmente independentes do COI e da Casa Branca, que nunca mostrou muita vontade de mexer neste atoleiro, nem sequer através de alterações à lei que permite a comercialização de esteróides anabolizantes.
Os EUA são um verdadeiro supermercado deste tipo de dopantes, acessível ao resto do mundo através da Internet e dos cartões de crédito.Como sempre, o poder económico destes desportos torna inglória qualquer tentativa para controlar os seus vícios. A enorme máquina de fazer fortunas influencia tanto os jovens norte-americanos que quando surge um caso de doping o laboratório que produziu a substância em causa regista aumentos significativos nas vendas.
Ao The New York Times, Craig Masback, que utiliza o cargo de director-executivo para mudar as práticas ancestrais da USATF, lançou um sério aviso: É um problema de todos os americanos quando mais de quatro por cento dos estudantes do secundário dizem ter consumido esteróides no ano passado.Nos últimos dias, as ligas profissionais apressaram-se a apresentar planos para controlar o doping que são pura cosmética, pois testam apenas algumas substâncias que pouca importância têm no rendimento dos atletas. Nas ligas profissionais parece que tudo é feito para ajudar os batoteiros a voltarem à competição o mais cedo possível, criticou Richard Pound.
A hipocrisia à volta do consumo de substâncias dopantes trará consequências na reputação [do desporto norte-americano] junto dos europeus, particularmente os jovens, que ficam com a percepção que os EUA só cumprem as regras enquanto estas lhes servem, escreve lembra o jornal nova-iorquino, criticando as ligas profissionais: O novo programa da Liga de basebol é uma anedota. Só se torna num programa genuíno com sanções genuínas apenas se mais de cinco por cento dos atletas tenham testes positivos este ano (como se um número menor não fosse preocupante).Steve Bechler foi uma das vítimas da recusa de patrões e associações de jogadores em tomarem medidas realistas. Em Fevereiro, o jovem lançador dos Baltimore Orioles morreu de insolação, porque três comprimidos de efedrina levaram a que agissem em conjunto outros factores, como o tamanho anormal do coração e uma dieta rigorosa, quase sem alimentos sólidos. Nessa altura, a Food and Drug Administration revelou que já tinha registado pelo menos cem mortes ligadas à efedrina. No futebol americano, 90 por cento dos jogadores dopa-se; há dez anos, a vida de um homem norte-americano era de 71 anos, mais 14 do que um jogador.
Artigo da PÚBLICA de 30 de Novembro
Obs: Há muito que me interrogava por que iam alguns conhecidos "fundistas" treinar para os EUA, quando aquele país não era ( nem é ) uma potência em provas de "fundo"." Talvez fosse pelo "clima..."
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