Quando os portugueses Vasco da Gama e Bartolomeu Dias dobraram o Cabo da Boa Esperança, em 1498, ainda os "bantu" não haviam lá chegado. Segundo o Padre Raul Ruiz de Asúa Altuna, na sua obra "Cultura Tradicional Banto", estes chegaram por terra ao sul do continente africano apenas no início do século XVII. Curiosamente, quase ao mesmo tempo que os holandeses, que ali chegaram por mar, fundaram a Companhia Holandesa das índias Orientais, em 1621 e a cidade do Cabo, por Jan Van Riebeck, em Abril de 1652. De acordo com o etnólogo José Redinha, só após a ocupação europeia, no final do século XIX, os grandes movimentos migratórios "bantu", foram dados por findos.
Na realidade, em grande parte da África sub sahariana, nomeadamente na África Central e Austral, viviam apenas Pigmeus (hoje, em maior número, na área de floresta da actual República Democrática do Congo) e povos Khoïsan, que, em Angola, se encontram actualmente dispersos em toda a largura da faixa sul de Angola, abaixo do paralelo 14, em áreas ocupadas pelos "Bantu".Num trabalho do jornalista e escritor José Freire Antunes, o ex inspector da PIDE Óscar Cardoso afirma que aquela ex polícia política portuguesa, com o objectivo de facilitar as missões de reconhecimento das tropas portuguesas contra os movimentos nacionalistas, criou, em 1967, uma força militar especial denominada "Flechas". Chegaram a ser seiscentos, em 1967 e, em 1974, eram já mais de mil.
Antes de a PIDE recrutar angolanos no seio dos diferentes grupos etnolinguísticos, os koïsan, rápidos, perseverantes, resistentes à fadiga e considerados bons pisteiros, "capazes de olhar para um terreno e ler tudo o que podia conter (...)", foram dos primeiros "Flechas" a ser recrutados pelos portugueses. Ainda segundo o testemunho daquele ex-inspector da PIDE, "muitos deles viviam num regime de autêntica escravidão ao serviço de chefes bantos, ao passo que muitos outros eram forçados ao nomadismo".Sempre que as relações de horizontalidade entre povos se esbatem, há uma determinada época e um determinado campo de batalha que estabelece a diferença entre vencedores e vencidos. Daí à dominação e à subjugação é um salto.
Assim foi em Angola com o colonialismo em relação aos "bantu", mas já havia sido, muito antes, com os "bantu" em relação aos "'koïsan", estes também conhecidos por "kamussequele" ou "bosquímanos".Quando falamos em angolanos "genuínos" ou '"autóctones", quer no sentido de "autênticos" ou "puros", quer no contexto de "verdadeiros" ou "legítimos", a que angolanos, afinal, nos queremos referir? Será, por ventura, aos representantes vivos das mais remotas populações angolanas, caçadores recolectores nómadas, que vivem hoje isolados em grupos?Como resultado de uma miscigenação realizada há milhares de anos, entre camitas e negros, os "bantu", segundo Ki Zerbo, provenientes do sudoeste do Sahara ou do lago Tchad., deram início à sua migração para sul, há cerca de 3 ou 4 mil anos, quando os "koïsan", na África Central e Austral, teriam sido milhares ou mesmo milhões de pessoas que já cá existiam.
Os "bantu" terão chegado à actual Zâmbia por volta do século IV d.C., já detentores de uma tecnologia relativamente avançada. Tinham utensílios e armas em ferro e dominavam a cerâmica. Eram, principalmente, sedentários agricultores e apenas a necessidade de sobrevivência os fez migrar para o território onde viviam os "koïsan", onde a coexistência não foi pacífica, levando estes, por sua vez, a migrar mais para sul, em especial para o que é hoje o Botswana e a Namíbia.Em 1960, calculava-se que o seu número, em Angola, não fosse superior a sete mil. Segundo José Redinha, os "testemunhos mais remotos estão calculados em 10 a 15 mil anos atrás (...)" e constam de pinturas existentes de grupos koïsan na Namíbia. As suas peças de arte mais significativas resumem-se praticamente a pedras furadas ou "Kwes", fiadas de pequenos discos de casca de ovo de avestruz e a alguns instrumentos musicais.
Do ponto de vista religioso reconhecem a existência de um ser supremo, que designam de "gana" ou "nava". Contudo, hoje, será que estes genuínos e verdadeiros autóctones angolanos estão recenseados?Que exercício de cidadania se espera deles? Contudo, são angolanos de pelo direito, cujos nomes teremos certamente dificuldade em registar num Cartão de Eleitor, pois sempre foi difícil escrever os seus nomes no registo de qualquer conservatória e posteriormente num Bilhete de identidade. Nunca lhes foi conferido, no tempo colonial, o estatuto de "assimilado" e agora que estatuto terão, para além de serem angolanos de pleno direito?Angola, primeiro intitulada província ultramarina e, posteriormente, colónia portuguesa, surge, apenas, em 1869, após a fusão do reino do Ndongo e do reino de Benguela, quando já ali haviam nascido indivíduos provenientes de diferentes etnias, de diferentes cores e de diferentes condições socio-económicas, já que Luanda e Benguela foram os principais portos escoadouros de tráfico de escravos para o Novo Mundo.
Assim sendo, desde a segunda metade do século XIX e no verdadeiro contexto angolano, todos os que nasceram na então designada província ultramarina de Angola e se consideravam, à época, angolenses (negros, mestiços e brancos), mais os koïsan, porque, apesar de expulsos pelos "bantu", já viviam neste território, deveriam, então, ser considerados genuínos e autênticos(?!).
Mas, porque colocar a questão, se no contexto jurídico constitucional, angolanos são todos os que, reconhecidamente, têm direito a exercer a sua cidadania plena, no contexto de uma democracia participativa e representativa, sem qualquer tipo de discriminação, onde a questão de uma pretensa "genuinidade" ou "autenticidade" não se coloca?
Não estamos, felizmente, em tempo de Galileu e de Copérnico onde, no início do século XVII, o primeiro foi chamado a depor no Tribunal da Inquisição por insistir que não era o Sol que andava à volta da Terra, mas sim o contrário.0 resto passa apenas por querer puxar assunto, que não leva endereço para a construção da Unidade Nacional e para a criação de um verdadeiro espírito de angolanidade, que se deseja para o futuro de um país unido, pacificado, moderno, aberto ao progresso económico, científico e social.
Por: Wa-Zani - In, Jornal de Angola, 4 de Outubro de 2007
Sem comentários:
Enviar um comentário